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Que tal falarmos sobre as armas?

Muito se fala sobre o porte de armas, em uma confusão de dados e estatísticas. O que realmente é verdade ou mito?



Como médico, tenho o costume de ler trabalhos científicos para me manter atualizado sobre o que há de mais moderno na minha área. E todo mundo que se atualiza a partir de revistas científicas (sorry, facebook) sabe a dificuldade que é tirar conclusões objetivas para nortear suas condutas. É costume se brincar que meta-análise é uma forma de se espremer os números para que se obtenha os dados que mais lhe interessa. A mistura do envolvimento de empresas privadas, desespero em mostrar dados promissores para que não se cortem verbas e até mesmo a questão natural de se manter fixo a uma teoria mesmo que evidências apontam o contrário são vieses importantes demais para serem ignorados.

O mesmo acontece quando você pega outros temas científicos. E a relação de armas com o número de homicídios é um deles. Esses dados são jogados nas redes sociais de forma que se pode provar qualquer teoria que você crie. Isso acaba criando dados conflitantes que mais atrapalham que ajudam.


Há alguns meses, a Small Arms Survey publicou um estudo mostrando a relação direta do número de armas em um país e sua taxa de homicídio. É uma instituição séria, sediada na Suíça e que dá pra se confiar nos dados. Mas os dados a princípio não fazem sentido nenhum.


Pega-se o Japão, por exemplo, que praticamente não possui armas. Possui uma taxa de 0,3 homicídios por 100 mil habitantes, muito inferior aos 20 homicídios para cada 100 mil habitantes que o Brasil possui. O Brasil tem cerca de 20 vezes mais armas por habitante que o Japão.


Analisando somente esse dado, posso concluir então que quanto mais armas, maior o número de homicídios, então, bora banir todas as armas.

Por outro lado, Alemanha tem cerca de 30 armas por habitantes, maior do que o Brasil, mas índices baixíssimos de homicídios.


Ok, tragam as armas de novo.

A verdade é que pode-se manusear os dados a vontade para que cada um tenha sua verdade. Tanto um grupo armamentista pode ter estudos e dados verdadeiros sobre o porte de armas quanto um grupo contra as armas.

Só há uma explicação para isso: ou os estudos estão errados - o que é quase impossível, afinal números não mentem - ou estamos comparando mangas com bananas.

Basta um pouco mais de atenção para entender algo que parece óbvio mas que não é tão evidente à princípio: o estudo compara o número de armas e o número de homicídios entre países com capacidade jurídica e grau de pobreza da população completamente diferentes entre si.

O principal fator que contribui no aumento no número de homicídios pela criminalidade não são as armas, mas a lei que regula a criminalidade. Países com taxas de resolução de homicídios acima de 90% tem índices muito baixos, mesmo tendo altas taxas de armas por habitantes. O Brasil, com sua taxa de resolução de 6%, acaba tendo uma das maiores taxas de homicídios do mundo.

Então, a melhor forma de fazer esses estudos é tentar retirar esses vieses que dificultam uma análise precisa.

A instituição Harvard Injury Control Research Center, ligada à faculdade de Harvard, fez diversos estudos analisando as estatísticas nos Estados Unidos no mundo. Vários estudos mostraram que quando você compara países com a mesma taxa de pobreza e a mesma taxa de resolução de homicídios, o número total de homicídios por habitante é proporcional ao número de armas que a população possui. Os principais artigos estão no final do texto.



Quando você compara os estados americanos nesse mesmo quesito, é fácil identificar a mesma tendência.

Nos Estados Unidos, o FBI divulgou há pouco tempo que o número de homicídios aumentou em 32% nos últimos 4 anos, enquanto o número de assaltos com uso de arma de fogo aumentaram 17%.

Em 2015, os Estados Unidos apresentaram 355 episódios de tiroteio em massas (onde há 4 ou mais vítimas envolvidas) em 365 dias do ano.

A Academia Americana de Pediatria apresentou ano passado um grande estudo que mostrou que crianças entre 5 e 14 anos de idade tem 11 vezes mais chance de morrerem por arma de fogo nos Estados Unidos que em outros países desenvolvidos onde o número de armas por habitante é consideravelmente menor.




A conclusão que se pode chegar de tudo isso é que, ao se comparar grupos iguais de populações, o número de armas aumenta proporcionamente o número de homicídios. O que determina o grau de criminalidade não é o número de armas em si, mas o poder de resolução de uma nação em identificar e punir os casos de homicídio.


É claro que quando você sofre um assalto, o que vem a seguir é um estado de humilhação, de violência e de raiva. O primeiro pensamento de todos sem exceção é: "Se eu tivesse uma arma para me defender...".


E a primeira resolução que se toma após um assalto é essa: preciso de uma arma para proteger a mim e minha família. O problema é que os dados mostram exatamente o contrário: o fato de possuir uma arma para auto-proteção aumenta absurdamente a chance de você ser morto durante um assalto. A supresa, o nada-a-perder, o manuseio mais usual das armas é sempre maior do assaltante do que o seu. Claro que há situações onde tudo corre bem - e essas são compartilhadas aos milhares nas mídias sociais - mas na grande maioria das vezes não é isso que observamos na vida real.


Entendo quem queira ter armas para deixar em casa, em caso de proteção. Mais ainda os que moram em lugares afastados, onde a polícia demoraria muito tempo para chegar, como fazendas. Entendo os que clamam pela liberdade de decidirem se querem ou não terem armas para sua proteção.


Há dois pontos aqui. O primeiro é que a liberdade de uma pessoa termine quando inicia a do próximo. Há pessoas que não se sentem seguras sabendo que pessoas ao seu lado tenha armas. Se filho pode tomar um tiro ao pular o muro para buscar a bola que caiu, confundindo com alguém que está tentando invadir a casa. Uma pessoa bêbada pode usar a arma durante uma confusão entre vizinhos. Adolescentes podem encontrar a chave escondida da gaveta que guarda a arma e atirar acidentalmente em um dos amigos.


A segunda questão é que você pode sim ter armas. Mas há restrições para isso. Nada mais justo: até para ter carteira de motorista você tem que passar provações para mostrar que você realmente pode dirigir um carro. Ausência de antecedentes criminais, prova de que sabe manusear uma arma e teste psicotécnico, além de passar por avaliações se a arma está sendo bem guardada. Nada injusto ou exagerado, concorda?


Quanto a permissão a ter porte de armas para usar na rua, acredito que a maioria das pessoas consegue entender que distribuir armas para um país que tem resolução de apenas 6% dos crimes de homicídio é uma loucura. Quantos daqui já tiveram uma raiva tão grande em discussões estúpidas - como uma simples briga de trânsito - que se tivesse uma arma disponível na ocasião não poderia ter feito a besteira de suas vidas?


A discussão sobre armas deve ser feita, mas com critério, racionalidade e dados estatísticos sérios, sem vieses que podem mais causar confusão que esclarecimento.


Hepburn, Lisa; Hemenway, David. Firearm availability and homicide: A review of the literature. Aggression and Violent Behavior: A Review Journal. 2004; 9:417-40.

Hemenway, David; Miller, Matthew. Firearm availability and homicide rates across 26 high income countries. Journal of Trauma. 2000; 49:985-88.

Miller, Matthew; Azrael, Deborah; Hemenway, David. Household firearm ownership levels and homicide rates across U.S. regions and states, 1988-1997. American Journal of Public Health. 2002; 92:1988-1993.

Miller, Matthew; Azrael, Deborah; Hemenway, David. State-level homicide victimization rates in the U.S. in relation to survey measures of household firearm ownership, 2001-2003. Social Science and Medicine. 2007; 64:656-64.

Miller M, Azrael D, Hemenway D. Firearms and violence death in the United States. In: Webster DW, Vernick JS, eds. Reducing Gun Violence in America. Baltimore MD: Johns Hopkins University Press, 2013. Swedler DI, Simmons MM, Dominici F, Hemenway D. Firearm prevalence and homicides of law enforcement officers in the United States. American Journal of Public Health. 2015; 105:2042-48.

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